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Artigos

A ‘Visão de Mundo’ da Astrologia e suas Contribuições
ao Pensamento Contemporâneo

Autor(a):

Ângela Nunes (Argentina)

em

28 de junho de 2009

“A paixão mais profunda da alma ocidental é redescobrir a unidade com as raízes de seu ser.” (Richard Tarnas, in Prigogine, Ilya: “Carta para as Futuras Gerações”)

1 – Astrologia e Crise

Vivemos numa época em que a palavra “crise” parece resumir o seu espírito, seja na arte, na ciência, na filosofia e nos valores da sociedade de um modo geral. A sensação é de que não podemos dar nem mais um passo sem cair num vazio abismal. A busca das razões ou “desrazões” para se ter chegado a esta situação tem sido alvo de estudos e análises, gerando debates em todas as áreas desde meados do século passado.

 Discute-se o fim das artes, da história e até a ciência parece ter desembocado num impasse de difícil resolução. A tudo isso se chama “crise” (ou necessidade de mudança) – de um modo de pensar, de conhecer, de aplicar nosso conhecimento, de conviver com a natureza, de criar, enfim de um jeito de viver. Quanto mais ela foi se alastrando, mais abrangente se tornava nosso questionamento, indicando que os impasses não eram apenas locais, mas diziam respeito a algo maior, ao nosso próprio modo de pensar. A investigação no campo epistemológico foi revelando como era fragmentário esse modo de pensar e ver o mundo e o quanto essa visão estava esgotada, não sustentando mais a realidade. Em muitas áreas começaram a surgir mudanças principalmente em física quântica e na biologia, que contribuíam com suas reflexões para um campo comum de discussão epistemológica que se formou face a insolúvel fragmentação geral do pensamento, do conhecimento e da própria consciência. Os cientistas começavam a perceber que o distanciamento da natureza, imposto por um modelo e pelo método científico, teria que mudar, e uma nova aliança deveria ser feita com a natureza (cf. Prigogine, 1984; Bateson, 1986). Uma reação geral passou a vigorar e a ser posta no campo comum de discussão – a epistemologia. Este quadro de mudanças entrou pelo século XXI buscando novas perspectivas que pudessem unificar o campo do pensamento como um todo, a partir de uma nova síntese entre o homem e a natureza.

Segundo Richard Tarnas, professor de filosofia e história da cultura, está surgindo uma nova perspectiva que diz respeito a fundamental convicção de que a relação da mente humana com o mundo não é dualista, como pensaram os filósofos, mas participativa (cf. Tarnas, 2000, p. 460), mostrando que o foco da crise estava sediado no nosso fragmentário modo de pensar. Mesmo a Astrologia, aparentemente imune a crises face a sua consistência, não tem escapado de seus próprios questionamentos, como tem sido visto em debates. Por exemplo, um que ocorreu no ano de 2006, “Previsões em Astrologia” (promovido pelo Espaço do Céu e AstroBrasil em 25/11/06, no RJ), onde foi discutido se havia a possibilidade de se fazer previsões infalíveis numa época em que a probabilidade abre bifurcações e uma maior amplitude de escolhas. Evidenciaram-se as ligações da Astrologia com os outros saberes, implicada no campo geral das práticas humanas, de um modo a que chamamos “transdisciplinar”. Quer dizer, uma ligação no sentido de que a Astrologia convive atravessando e ultrapassando os saberes, num movimento de interação, respeitando suas respectivas individualidades, onde cada um colabora para um saber comum, sem que se transforme numa disciplina. (cf. Carta da Transdisciplinaridade, 1994, p.2 ). Por outro lado, nos permitiremos perguntar – com a impaciência de quem aparentemente não necessita, como se fosse óbvio – qual é a natureza de nossa ligação com a Astrologia – nós, astrólogos do século XXI. Seremos ainda, e até hoje, pastores da Mesopotâmia projetados no tempo, andando por aí de computador na mão, passando ao largo de crises, ou somos também pensadores em crise sim, militantes de uma Astrologia que se desenvolveu e aprendeu mais em sua trajetória histórica desde a visão de mundo do passado (anterior aos filósofos pré-socráticos) até a contemporânea?

Segundo Tarnas (2007), “o difícil é ver ao mesmo tempo duas imagens, duas verdades, não eliminar nada, manter a tensão de opostos.” (p.14). Não há dúvida de que esse é o cerne de um problema que nos atinge a todos, astrólogos ou não. Mas em relação a nós astrólogos, somos agentes de nossa época e, ao mesmo tempo, carregamos também, na nossa prática, a visão de um mundo diferente do atual, moldado pela Astrologia em seus primórdios – e esses dois extremos funcionam plenos, juntos e ao mesmo tempo na Astrologia, de forma harmônica e eficaz. É isso o que justamente falta na atualidade – essa união de coisas aparentemente opostas – e faz da Astrologia um modo de ver as coisas inteiras, fundamentalmente importante para nós nesse momento, em que só se sabe enxergar tudo em partes, fragmentado, precisando haver um aprendizado maior, que ultrapasse isso.

A Astrologia pode nos fazer lembrar de algo que ficou perdido no tempo, algo fundamental, que foi simplificado pelo pensamento grego e que agora devemos recuperar em sua inteireza. Recuperar-nos de um esquecimento é tarefa para psicanalistas – eis que o pensamento ocidental está no divã, mas não a Astrologia. Ao contrário, talvez ela tenha um efeito curativo para a época contemporânea, o nosso “turning-point”. Tarnas (op.cit.) chama a fragmentação ou afastamento desse estado de união primordial com o mundo de “desencantamento”, desvitalização, processo de objetivação que nega ao mundo a capacidade de abrigar intencionalidade, de expressar sentido, de encontrar e comunicar finalidades, coisificando-o. (p. 21). Portanto, apesar da Astrologia ser alcançada, por um lado, pelas questões de crise contemporânea, uma vez que participa do campo transdisciplinar, ela também possui um salvo-conduto em meio à fragmentação reinante, que é sua visão de mundo una e integrada, herança da mente participativa que a erigiu, antes de ocorrerem as cisões gregas introduzidas pelo pensamento pré-socrático (séc. V aC), notadamente vindos de Parmênides (cf. Garcia-Roza, 1990). Mas já estava formado o pensamento astrológico que se espalhou, como explica Whitfield (2001): “depois da conquista da região mesopotâmica, primeiro pelos persas e depois pelos gregos, um fluxo de ideias e pessoas foi iniciado afetando profundamente a religião e a ciência.” (p. 25).

Mas a força da visão astrológica inicial tão coesa resistiu a todas as eras históricas, fazendo da Astrologia portadora desse fundamental ponto de vista vital, vivo, isento de fragmentação, enviado como uma mensagem na garrafa, que é a visão de um mundo integrado. Ainda segundo Whitfield (op.cit.) “há aqui sem dúvida a semente da doutrina de que o microcosmo e o macrocosmo são ligados. (…) A tradição babilônica foi se debilitando e pereceu, mas não antes que os elementos vitais de sua astronomia e religião astral tivessem sido transmitidos através do mundo grego, para o Egito por exemplo, onde ela floresceu vivificando-se de um modo novo e vigoroso.” (p. 10-11,25). De algum modo a Astrologia guarda vivo em seu saber, mais que tudo, essa propriedade de juntar integrando todas as coisas, aquilo que Bateson (1986) chamou de “o padrão que liga”, uma forma de ‘ver-junto’. Não se trata de um artifício mas de algo ligado à multiplicidade do mundo, ou seja, da própria realidade, daquele abismo sem fim no qual o pensamento ocidental está prestes a mergulhar. Lá se encontra a Astrologia, no amálgama que reúne símbolo e acontecimento, não-tempo e tempo, plena e atuante em dar voz aos significados em sua inteireza.

2 – A mudança na ‘visão do mundo’


Quando Tarnas (1991) afirma que “o eixo da enrascada moderna é epistemológico: é a isso que devemos examinar para encontrar uma saída” (p. 448), ele está dirigindo o foco para a questão da separação sujeito-objeto, cerne que atinge não só a ciência mas o conhecimento como um todo. Sendo a epistemologia o estudo dos processos do conhecimento, é ela que vai investigar as bases e fundamentos sobre os quais se constrói o conhecimento. Esse tipo de investigação tornou-se um ramo de estudo muito importante em meados do século XX pois para ele convergiam todos os esforços de pesquisa dos problemas em comum, que atingiam as ciências em seu conjunto. É nesse campo comum de ideias, discutido pela epistemologia, que se estuda o modo de pensar, a forma inconsciente como vemos e moldamos o mundo. Mas também nos damos conta da evolução desse modo de pensar, ou seja, do desenvolvimento histórico da nossa ‘visão do mundo’, sobre a qual se constrói a base geral do nosso pensamento. Entendemos que ela produz uma realidade com todos os valores que nos servem de referência. Tarnas (2007) diz que essa forma de pensar – ou visão do mundo – é arquetípica, ou seja, se estabeleceu como um princípio inconsciente, tal sua força de comando. Ela está incrustada em nossa mente pois é fruto de um desenvolvimento histórico e lento, um deslocamento do centro à periferia. Não podemos deixar de reconhecer que somos impelidos a indagar sobre nós e o mundo, a respeito de como tudo começou, nossa vida na Terra e a própria Terra. Há formas diferentes de se dar respostas a essas perguntas.

No passado mais remoto, os mitos é que contavam esse princípio, como uma verdade indiscutível e revivida (ritual) – era a busca da origem. Entre o mito e a instauração da Filosofia – o que não foi uma passagem linear – os pensadores gregos do século VI aC já procuravam uma substância fundamental da qual tudo o mais se originasse. Com os chamados “filósofos pré-socráticos”, enquanto Heráclito brilhantemente delineava uma concepção dinâmica, pensando processos e não coisas, Parmênides, ao contrário, é conhecido por ter dado início à primeira reflexão filosófica sobre o Ser (cf. Garcia-Roza, 1990), instaurando os dois caminhos: o da verdade e o da falsidade. Muitos aí situam o começo do pensamento dualista, base da filosofia e do pensamento ocidental. De fato, em seu exercício lógico, Parmênides, partindo “da premissa ‘o Ser é’, acaba por negar inteligibilidade ao movimento e à multiplicidade, assim como ao testemunho dos sentidos.” (p. 40-41). Portanto, se a multiplicidade do mundo não é inteligível, a redução de seus significados a dois – verdade ou falsidade – oferece uma via de simplificação para a reflexão mas ao mesmo tempo institui a repressão dos múltiplos significados deixando apenas um: o do conceito ou lei – ou seja, a verdade objetiva da ciência.

E até hoje a busca para entendermos de onde viemos continua, com a investigação sobre o Big Bang, a grande explosão inicial que teria dado origem ao Universo. Nessa viagem a que somos instigados pela própria curiosidade, o desenvolvimento histórico de nossa consciência insinua um processo de auto-revelação do próprio Universo – ou seja, é como se o Universo “pensasse” por nosso intermédio (cf. Tarnas 2000, p. 460). Ela conta a história dos modos de pensamento, a história da mudança do nosso ponto de vista ou ‘visão de mundo’. Nos primórdios havia uma coincidência direta entre consciência e mundo, num processo participativo, ou seja, existia uma proximidade, uma participação, uma interação direta com a realidade sem mediação, um ato diametralmente oposto àquele da forma de pensar e da prática atual. Por exemplo, a visão científica, pelo contrário, se realiza através de um afastamento do mundo, analisado de longe, de fora dele, de dentro de um laboratório. Em busca da autonomia, fomos nos afastando cada vez mais da natureza, criando um mundo próprio, tecnológico e avançado, mas desprovido de alma – a anima mundi foi abandonada ainda nos primórdios. Segundo Tarnas, esse é um processo que guarda semelhança com o desenvolvimento da criança, desprendendo-se da mãe, ganhando cada vez maior autonomia, dominando seu próprio ambiente.

Por um lado, o ocidente pagou, e ainda paga, um alto preço por esse desenvolvimento, que evoluiu pela dessacralização e desvitalização da natureza, abrindo caminho para o que Tarnas chama de ‘canibalização’ (cf. 2008). Mas, por outro, inventou um método de simplificação da realidade (o dualismo) com o qual construiu de cidades modernas a computadores, enviou homens à Lua e vem sondando do nosso sistema a galáxias distantes. Segundo D’Amaral (2004), o ocidente inventou um caminho de lidar com a multiplicidade (quer dizer, com o todo, com a totalidade do mundo) sem ser negando seu valor, como à maneira oriental – ou seja, o mundo sendo um sonho e a consciência um sonho dentro de um sonho, a contemplação e a tentativa de encontro da absoluta serenidade, que é a total indiferenciação. Ao contrário, o ocidente optou pela via da diferenciação, passando pelo processo de simplificação da realidade, na luta por dominar a dispersão e a extrema vitalidade desse mundo abismal, no qual agora, de qualquer modo, está prestes a retornar. A multiplicidade é o próprio mundo em sua inteireza, com suas ambiguidades, emoções, acontecimentos, sentimentos, visão sensível, que tiveram de ser extirpados para que a ciência pudesse se desenvolver. É nesse turbilhão vivo que a Astrologia atua, em sua complexa-simplicidade – por isso sua extrema importância nesse momento em que precisamos aprender a atuar dentro dessa visão integrada. Desembarcados em nosso “turning-point”, lá encontramos a Astrologia, com seu frescor originário e ao mesmo tempo atual. Das observações nos Zigurates ao telescópio Hubble, a única coisa que em nós não mudou foi nossa ligação com as estrelas.

3 – Buscando um modo diferente de pensar – uma pequena resenha de mudanças

Desde meados do século passado, esforços foram sendo feitos para realizar mudanças que dessem conta de descobertas ocorridas no campo da ciência e do pensamento. Mais especificamente, através da pesquisa no interior da matéria, descobriu-se sua dupla manifestação, tanto como onda quanto como partícula, ao mesmo tempo. Segundo o físico quântico David Bohm (1983), “talvez [o átomo] possa ser melhor considerado uma nuvem indefinida, dependendo, em sua forma particular, de todo o ambiente, e inclusive do instrumento de observação” (p. 9). Não se podia mais, a partir daí, manter a divisão entre aquele que observava e o que era observado. A princípio questionou-se uma mudança de paradigma, ou a busca de novas teorias que dessem conta dessa nova realidade surgida de laboratórios e aceleradores de partículas. Como sabemos, paradigmas são modelos construídos por nós para lidar com a realidade e, enquanto tais, não são extraídos da observação pura e simples de um real objetivo que existe “lá fora”, mas são um produto de nossa própria visão do mundo. Portanto, com o tempo, ficou entendido que uma simples mudança de paradigma não resolveria um problema cujas raízes eram mais profundas, arraigadas no nosso próprio modo de pensar. Através de um exemplo bem simples, podemos ilustrar como a mudança de visão contribui para o entendimento maior – a história da investigação de “el niño”. Trata-se do conhecido fenômeno de alteração na distribuição da temperatura nas águas do Oceano Pacífico, com profundos efeitos no clima. Há milhares de anos os pescadores da costa oeste da América do Sul enfrentavam uma época em que os peixes desapareciam, porque águas quentes invadiam o mar sem que se soubesse a razão, sendo visto apenas como uma ocorrência local. Foi Gilbert Walker (1868-1958), matemático e meteorologista britânico, o primeiro a dar pistas do fenômeno, quando pesquisava as monções na Índia. Ele percebeu que era preciso estudar o tempo de forma mais ampla e global, além da Índia, e acabou realmente achando um padrão que ligava a temperatura no oceano Pacífico à pressão atmosférica. Ele criou um nexo do padrão do tempo entre continentes diferentes. Mesmo estando certo, suas teorias foram rejeitadas porque as pessoas não entendiam como o clima em uma parte do globo terrestre podia estar ligado a outra parte distante e diferente, de modo sistêmico: as coisas ainda eram vistas de modo separado. Isso foi no início do século passado e precisou de 50 anos para que pudesse ser entendido como um fenômeno climático global, de extrema importância. Mas Walker, mesmo sem computadores como temos hoje para fazer os cálculos de medições e cruzar os dados, percebeu a conexão que havia entre os fenômenos, interligando-os. E isso permitiu que, mais tarde, alguém aproveitasse esse sentido maior para entender algo que nos está sendo muito útil, principalmente em relação ao clima e ao aquecimento global. Hoje, a Teoria do Caos (cf. Crutchfield et alii, 1987), em seu ponto de vista sistêmico, ligando eventos aparentemente sem conexão, é utilizada para se pesquisar as tendências do clima. No que diz respeito aos padrões, Bateson (1986) assinala: “quebre o padrão que liga os itens do aprendizado e você necessariamente destrói toda a qualidade” (p. 16). Por outro lado, quando pensamos de forma interligada, um padrão maior surge. Porém, como nos diz Bateson, fomos treinados para pensar a respeito de padrões como assuntos estáveis e, no entanto, o caminho para se começar a pensar no “padrão que liga” (ou nexo, interconexão) é considerá-lo como uma dança de partes que interagem e só secundariamente dão-se aos limites (p. 21). Assim, pensar juntando as coisas faz surgir um nexo, um padrão, mas o padrão que deriva dessa concepção é um padrão variável, e não fixo. Tanto Tarnas quanto Bateson e Prigogine (1984) identificam o processo de afastamento entre o homem e a natureza, entre mente e natureza – ou seja, a falta de conexão – com um desencantamento do mundo, uma desvitalização, em suma, uma fragmentação. Prigogine(1917-2003), um dos mais notórios cientistas da nossa época, prêmio Nobel de Química em 1977 por seu trabalho em termodinâmica sobre estruturas dissipativas e sistemas complexos, afirma que “as ciências matemáticas da natureza, no momento em que descobrem os problemas da complexidade e do devir, se tornam igualmente capazes de compreender algo do significado de certas questões expressas pelos mitos, religiões e filosofias” (p. 25), ligando a ciência a um sentido maior. A partir de meados do século XX, a necessidade dessa re-ligação entre conhecimento e sentido torna-se mais forte, compreendendo-se que a natureza (o cosmo) não é um objeto de modo a ser submetido por nós. “Considerarmo-nos estrangeiros à natureza implica um dualismo estranho à aventura das ciências, bem como à paixão de inteligibilidade própria do mundo ocidental. Esta paixão consiste, segundo Richard Tarnas, em reencontrar sua unidade com as raízes de seu ser.”(Prigogine,1996, p. 14). A ciência da qual fala nos remete à complexidade do mundo real e ao reconhecimento dos dois principais caracteres da natureza: sua unidade e sua diversidade. Sobretudo, na fundamental compreensão do papel do tempo na formulação das leis da física, que concorre pra satisfazer uma melhor compreensão da natureza. Por aí podemos perceber o quanto a própria ciência se dirige à recuperação de uma natureza viva, dona de seus próprios tempos. Mas tais mudanças afetariam, muito além de paradigmas, nossa própria concepção da realidade, moldando uma visão diferente onde os estudiosos identificaram características comuns com o sistema de pensamento antigo, como por exemplo, a afirmação da natureza multidimensional da realidade, a compreensão holística da parte e o conjunto em todos os fenômenos, o reconhecimento de uma ‘ecologia da mente’ na natureza. Acima de tudo, o que urge ser superado é a visão de mundo fragmentada, sobre a qual a ciência se apoiou. É para isto que o físico quântico David Bohm (1917-1992) chama particularmente a atenção por promover uma tendência ao isolacionismo impedindo a humanidade de trabalhar em conjunto, pelo bem comum. Ele explica que essa visão tem “origem em um tipo de pensamento que trata as coisas como inerentemente divididas, desconectadas e fracionadas em partes constituintes ainda menores. Cada parte é considerada como essencialmente independente e existente por si mesma” (1983 p. xi). Ressalta o fato de que, nesses moldes, a tendência é ver a humanidade separada da natureza. Por outro lado, o foco de Bohm é a “visão do mundo”, que considera crucial para a ordem global da própria mente humana (cf. p. xi). De um modo simples ele explica que “se o homem pensar a totalidade como constituída de fragmentos independentes, então é assim que sua mente tenderá a operar. Mas, se ele consegue incluir tudo, coerente e harmoniosamente, num todo global indiviso, ininterrupto e ilimitado (pois todo limite é uma divisão ou ruptura), então sua mente tenderá a mover-se de modo semelhante, e disto fluirá uma ação ordenada dentro do todo” (cf. p. xi)

É uma evidência, que salta aos olhos de muitos estudiosos, notadamente os historiadores, como Richard Tarnas, Peter Whitfield e Peter Marshall, aquilo que os astrólogos, mais do que ninguém, devem saber: que a Astrologia carrega esse modo de ver o mundo como uma totalidade, integrando nossa mente na natureza e em um todo maior, nos fazendo pensar e atuar na conexão com o mundo. Percebe-se que os astrólogos, respeitando toda a visão tradicional da Astrologia, estejam despertando para a necessidade de fazer esse link entre ela e as novas concepções, como a australiana Bernadette Brady, com seu livro “Astrology: a place in chaos”, e o brasileiro Carlos Fini, com sua apresentação multimídia dos sistemas complexos, entre outros. Não há dúvida de que esses trabalhos são extremamente importantes para a Astrologia na atualidade, assim como para os próprios astrólogos, porque reconhecem, tornando evidente, que a Astrologia apresenta as maiores afinidades com esse novo modo de pensar emergente, pois ela foi assim desde o seu começo. Poderíamos até dizer que agora o modo de pensar no ocidente almeja uma forma de lidar com o mundo semelhante ao astrológico, embora isso seja difícil de ser reconhecido. Mas não para Tarnas que, ao contrário, é de opinião que a Astrologia “coloca a mente e o self sob uma nova luz recontextualizando radicalmente o projeto moderno” (cf. 2007,p.490). Mas o que nos pareceu mais fundamental e profundo no entendimento que ele tem da Astrologia foi sua declaração de que “talvez o mais importante seja sua promessa de contribuir para o surgimento de uma nova visão do mundo autenticamente integral que, mantendo as insubstituíveis realizações e insights do desenvolvimento moderno e pós-moderno, possa reunir o humano e o cósmico e restaurar o sentido transcendente de ambos” (p.490). Portanto, centramos em Richard Tarnas nosso particular interesse, pois sendo um historiador, pôde compreender profundamente os elos que a aventura do pensamento tem com a Astrologia.

4 – Richard Tarnas e a Astrologia

O trabalho de Tarnas (2000; 2007) conta a história de nossa ‘visão de mundo’ desde a época arcaica, como um espelho do nosso próprio redimensionamento frente ao Universo e a nós mesmos. Podemos dizer que, de um modo bem abrangente, ocorreram dois momentos decisivos e fundamentais nos modos de ver o mundo: o primeiro corresponde a visão antiga da Terra como fixa, o ente mais evidentemente imóvel e sólido no espaço. E o outro diz respeito a revolução copernicana, com a descoberta do heliocentrismo e de nossa posição relativa e periférica no vasto Universo. A centralidade perdida nos traria um sentimento de solidão, nos fazendo sós no cosmo. Porém, esse sentimento só aumentaria a busca de uma compreensão cada vez maior desse imenso cosmo e de nosso papel nele, impulsionando o conhecimento. Tarnas (2007) aborda a história da passagem do ser humano de um estado participativo com a natureza para um modo de consciência diferenciado que , para ele, é a história da própria mente humana. Essa história se desenvolve por um crescente afastamento e desencantamento do mundo, através de uma gradual diferenciação do self e do homem em relação à natureza. Todo o sentido arcaico, assim como a própria anima mundi, teria migrado do mundo para a consciência, potencializando o ego e progressivamente esvaziando o cosmo primordial de seu significado. Esse complexo desenvolvimento histórico levou à dessacralização do mundo e à visão de um cosmo empírico. A alma, o sentido e a finalidade que antes se percebia no mundo moveram-se para o interior do homem. A separação sistemática de sujeito e objeto, resultante desse longo processo, é vista por Tarnas como uma estratégia fundamental da epistemologia para o desenvolvimento da mente humana. Porém o ganho de autonomia pagou um preço alto com a experiência de alienação. Segundo Tarnas já vivemos uma era de transição para uma nova visão, mas continuamos sustentando o duplo vínculo básico entre nossas aspirações espirituais e psicológicas e uma cosmologia objetivista. Ele aponta para a contribuição de Freud e Jung com a Psicologia Profunda como o início de um caminho de superação. Mas mostra como ainda persistiu a impossibilidade de haver uma ponte entre o self e o mundo (sujeito e objeto, psique e cosmo), numa tensão de opostos aparentemente insolúvel. Porém, ele ressalta o modo como Jung enfrentou esse desafio epistemológico e humano sustentando uma categoria especial de fenômenos que poderiam ultrapassar essa abismal divisão (cf.p.49): a sincronicidade. Jung passou 20 anos investigando antes de tentar uma formulação deste princípio. Simplificadamente, trata-se da observação, no curso de nossa vida, de coincidências significativas de dois ou mais acontecimentos independentes e sem aparente conexão causal mas que, não obstante, parecem constituir um padrão de significado (cf. p. 50). Jung observou o fenômeno na sua experiência pessoal e na situação terapêutica, principalmente nos períodos de crise e transformação. A Psicologia Profunda começava a descortinar uma nova visão, que Jung logrou enxergar num contexto mais amplo, desvendando a polivalência simbólica dos arquétipos, configurados na mente coletiva. Tarnas emprega a ideia dos arquétipos de Jung os associando à Astrologia em seus alinhamentos planetários específicos, que ele próprio pesquisou durante 30 anos. A Astrologia parecia possuir uma capacidade única para mediar um nível elevado de comunicação entre consciência e inconsciente (cf.p.68). Descrevendo a observada correspondência entre os acontecimentos humanos e culturais e os alinhamentos planetários, ele afirma que “todas [essas] reflexões foram antecipadas pela concepção junguiana do inconsciente coletivo mas as provas expostas nesse livro (2007) introduzem nessa perspectiva uma certa especificidade e talvez um fundamento cósmico mais explícito. Indicam com nitidez e grande detalhe os despertares cíclicos e as ativações reais de um impulso arquetípico particular nos assuntos humanos, ao mostrar sua continuidade dinâmica e seu ritmo específico de aparição ao longo dos séculos. (…) Tudo isso é possível graças a hipótese, ou a compreensão, de que os movimentos planetários têm significado, quer dizer, que se correspondem de maneira inteligível com princípios arquetípicos particulares, e seus padrões cíclicos estão associados com os padrões cíclicos dos assuntos humanos” (p. 203) Contudo, o mais importante em relação à obra de Tarnas, além do elo que ele faz entre a Astrologia e o momento atual contextualizando-a, é o fato dele chamar a atenção para sua visão de um mundo integrado, porque o que a distingue do modo de pensar fragmentário reinante é justamente sua unidade. Esse é um dos seus maiores legados embora tenha permanecido subjacente e escamoteado pelo próprio modo de pensar que a acompanhou até aqui – uma vez que ela, em sua multiplicidade, era tratada dentro de uma visão dualista. Mas Tarnas percebeu “um bom número de características comuns entre o sistema de pensamento antigo e a nova concepção da realidade hoje emergente em muitos campos” (p. 63). Foi a própria crise do pensamento que mais ressaltou as diferenças entre o modo ver o mundo da Astrologia e o modo fragmentário que estava sendo posto em questão. Mais que tudo, foi a epistemologia que revelou, com sua grave pesquisa sobre os fundamentos, essas diferenças de mentalidade e visão de mundo, fazendo com que a Astrologia pudesse emergir inteira e inquebrantável, livre deste olhar redutor, refletindo salutarmente um clamor de nossa época. A Astrologia deve ser considerada neste momento – e foi isso que Tarnas percebeu – como uma forma de pensamento exemplar, não apenas por sua unidade interna mas pelo modo como essa unidade se faz – na interconexão do não-linear com o linear, do temporal com o atemporal, do símbolo com o acontecimento – ao mesmo tempo.

5 – Considerações Finais

Situamos este trabalho, onde se falou de crise e Astrologia, num campo transdisciplinar pois os questionamentos discutidos abrangem a área do saber como um todo (incluindo a prática), estando a Astrologia entremeada a este campo. Transdisciplinar significa ir além de disciplinas, ultrapassar a fragmentação, transitando numa área de interação e mútua colaboração, de proximidade entre os saberes, e isso quer dizer “ver as coisas juntas”, enxergar aquilo a que Bateson (1986) chamou de “o padrão que liga”. Embora a Astrologia possua uma densidade própria e única, um corpo de símbolos que se autoconstituem sem dependência de explicações externas a ela, ao mesmo tempo esse corpo existe e se manifesta na interação, na interconexão de uma rede que engloba do humano ao cósmico. Nós astrólogos não vivemos à parte mas estamos igualmente submetidos às vicissitudes da nossa época, às ocorrências ligadas ao nosso tempo – somos astrólogos do século XXI. Se observarmos a trajetória da Astrologia veremos como ela se amoldou às diversas épocas, aos seus pensamentos e paradigmas, ao longo da história. Consideramos que esta seja uma propriedade dela, de se ligar a outros procedimentos e modos de pensar sem perder sua inteireza, manifestando-se no encontro e na interação, na impossibilidade de ser fragmentada. Isso a distingue e a faz saltar aos olhos de qualquer estudioso que, conseguindo superar sua visão modelar habitual, alcance enxergá-la plenamente, sem distorção nem reducionismo. Na história do pensamento ocidental, muitos estudiosos e artistas deram apoio à Astrologia, mas Richard Tarnas (2007) percebeu seu algo mais, aquilo que foi abafado por nossa visão superficial embora tenha continuado vivo e atuante e hoje constitui “sua promessa de contribuir ao surgimento de uma nova ‘visão do mundo’ autenticamente integral (…) que possa reunir o humano ao cósmico e restaurar o sentido transcendente de um e do outro”. (p. 490). Porque não podemos mais separar conhecimento e prática, conhecer e fazer, todo e parte, universal e local (que estão juntos na Astrologia), e nem podemos fundi-los em um só, dissolvendo suas diferenças. Ao contrário, temos que poder enxergá-los juntos e ao mesmo tempo sendo eles mesmos, em sua diferença, como um fractal. Conforme assinalou Tarnas, o mais difícil é pensar duas coisas ao mesmo tempo, usar o “e” invés do “ou”, ser e não-ser co-participantes a um só tempo. Mas se considerarmos que essa junção se dá no próprio movimento dos acontecimentos, no meio do mundo, no que se convencionou chamar de multiplicidade, dentro dessa dinâmica que tanto assusta atualmente a ciência, não sendo algo que possa ser imobilizado ou congelado, então poderemos entender como as coisas fluem e ao mesmo tempo persistem, se constituem mudando constantemente. Em Astrologia temos esse exemplo – o encontro do símbolo com o tempo – no acontecimento. O tempo é inerente à Astrologia, sendo dele que ela parte: da associação, da correspondência de um acontecimento no tempo com um momento cósmico, revelando do tempo sua qualidade (cf. p.489). O exercício da Astrologia dá-se no que ocorre no tempo – o início de uma vida, de um evento, de qualquer acontecimento no mundo, conectando-os ao cosmo. Ela está interconectada ao acontecimento por meio de uma rede, assim como e ao mesmo tempo este acontecimento se interconecta a ela, como num nexo. Ao mesmo tempo que ela cria um nexo de significado com o acontecimento, este a vai modificando. Muitos significados são agregados a ela ao mesmo tempo em que permanecem em seu princípio simbólico, sem contradição, fundando-se sempre de novo e diariamente. A Astrologia é nova todo dia, sendo o mais antigo dos saberes – daí o seu frescor e atualidade. Por isso, cada mapa é um exercício de criatividade, porque nunca se repete de forma totalmente igual. O padrão que existe na Astrologia é o padrão variável, de interconexões, ou seja, conhecendo-se o ciclo anterior, projeta-se o que pode ocorrer em um próximo – porém, nunca ocorrerá de modo exatamente igual, haverá sempre algo de criativo nisso. Assim como Tarnas, vemos na Astrologia a possibilidade de mostrar um pensar diferente, de revelar uma qualidade esquecida para que fosse recuperada em outras bases. Essas “outras bases” foram alcançadas por um caminho de ganho crescente de consciência – e isso faz sentido. Sem a amplificação da consciência jamais teríamos descoberto nosso lugar no Universo e uma pequena mas, muito significativa fração do que somos. Certamente, saber disso nos dá uma outra dimensão de nós mesmos e de nossa visão do mundo: foi o que Tarnas mostrou com sua obra. Porém, o mais importante em seu trabalho, para nós astrólogos, é o seu novo insight sobre a Astrologia, revelando na sua natureza una e visão do mundo toda a afinidade que ela guarda com a época atual. Como diz o professor Edgar Morin (2004), “hoje podemos saber que as partículas de nossos corpos nasceram nos primeiros segundos do universo, há quinze milhões de anos; que os átomos de carbono necessários para a vida estão forjados nas estrelas anteriores ao sol; que as moléculas são similares sobre a Terra que nós tomamos; que todo o cosmo se encontra em nós.” (p.32). E essa foi, desde sempre, a visão da Astrologia – a ligação entre nós e o cosmo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Rio de Janeiro, 7 de julho de 2009

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